terça-feira, 18 de agosto de 2009

Historias do Velho – Charles & Catarina

Estou sentado aqui no banquinho, despreocupado, quando o motorista, imediatamente a minha frente, atende o celular. Infração Grave!
- O que cê QUER? Minha ulcera já esta até doendo. Não. Não vai dar. O Charles é muito apegado comigo. Você só pensa nos valores materiais. Eu compro outro. Aliás, como você diz, só eu ocupo esse sofá mesmo. Deixa ele se divertir. Não. Não, já disse que não. Não vou me livrar do Charles. Eu e ele somos muito apegados. Thau. Depois a gente se fala. Tô trabalhando.
Desliga, e com que alívio constato isso.
-Pô, meu estomago ta queimando.
A trocadora justifica - Mas também, pelo que você me contou, você e a sua mulher ficaram bebendo cachaça até as seis da matina.
- Era uma especial. Das boas. De alambique, que o primo dela trouxe do Norte.
- Cachaça não faz bem pra você, Diogo. A Rose tem estomago de avestruz, mas você não agüenta essas rebordosas.
Rua Arquias Cordeiro. Só um expediente para me localizar no espaço. Ainda falta para chegar no Animamundi.
O motorista coloca um fone de ouvido.
Um homem magro, vestido de preto, sobe para o ônibus, rindo. Ele deixa para trás outras pessoas também as gargalhadas.
A trocadora pega um livro em sua bolsa, passa o dedo na língua e começa a folheá-lo.
Percebo que o livro é um dos da minha autoria.
O ônibus chega na Marechal Rondon.
Para meu extremo desconforto, o celular do motorista volta a tocar. Mas Diogo não atende. Ufa!
Três senhoras e um senhor, todos de idade, fazem sinal. Mas ele não para. Um dia, se tiver sorte, Diogo, O Motorista, vai chegar a essa idade e provará de seu próprio remédio.
A Marechal Rondon é longa.
- Pô, mó calor e ele queria fazer mais flexões. Quiiiii fessor chaaato!
- Ah! Mas ele é um gato, ta?!
- Ih! Mó velhãooo!
- É naaada. Ele é novinho! Cêeee é que taaa com inveeeja.
As vozes juvenis se calam de súbito.
- Já são dez e quarenta e um – fala uma voz rouca e sensual.
- A Marineti vai nos comer viiivos – responde-lhe outra voz, aguda, porém masculina.
Sinto um leve toque em meu ombro. Viro-me e vejo que quem tocou no meu ombro foi uma criança no colo de um rapaz de uns vinte e pouco anos.

Embora naquele momento eu não estivesse muito disposto ao sorriso, ainda assim, me esforço para parecer simpático para a criança. A criança fica só me olhando com viva curiosidade.
O rapaz com a criança no colo tem uma expressão facial que denota cansaço. Ele divide sua atenção entre a criança e o ponto em que vai soltar, e suas pálpebras teimam em querer se fechar.
O ônibus passa pela UERJ e esse rapaz desse com sua criança.
- Rose, já disse que não vou dar o Charles. Sou muito apegado a ele. Deixa ele roer quanto sofás ele quiser. Faz o seguinte: Os incomodados é que se mudem.
Silêncio.
- É isso mesmo que você ouviu. Já tô farto desse nhêm, nhêm, nhêm.
Silêncio.
- Quero nem saber, a casa é minha mermo.
Silêncio.
- É de minha mãe, é MINHA portanto. Vai te catar, Rose.
A trocadora interfere - Diogo, você esta errado.
- Ah, vai se... ah, que saco! Não, é com a Catarina que eu falei. Não, não, não vou mudar de idéia. Nãooo.
Praça da Bandeira.
- Eu vou ficar calmo é uma pinóia, cê ta me dando nos nervos, Rosenilda.
O relógio eletrônico marca dez e cinqüenta e oito.

Quando desperto, percebo que a trocadora Catarina está dormindo, apesar do burburinho no ônibus.
O motorista não mais fala no celular.
O livro, que levei oito anos para escrever, e que ela lia, encontra-se agora no chão. Eu, gentilmente apanho- o do chão.
A trocadora agradece com um muxoxo e apesar de me olhar frontalmente ela não me reconhece, apesar do óculos e do bigode serem os mesmo da foto da contra-capa.
Central do Brasil.
Apesar de não ser idoso, os amigos, e são poucos e valorosos, chamam-me de “O Velho”.
Onze e dois e a Candelária se avista a minha frente.
Na avenida Passos, no sinal vermelho, Diogo e Rosenilda fazem as pazes. Charles ficará, agora, alegrando a vida da minha leitora, a trocadora Catarina. Eu volto a cochilar, com indisfarçável sorriso.

Um conto da série “Histórias do Velho” escrito por Wanderson no Rio de Janeiro, América Latina - Dia de Santa Tereza de Portas Abertas de 2007

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