sábado, 26 de junho de 2010

Cochilando no trem, sonhei com Zumbi dos Palmares

Um homem entra em vindo do outro vagão. Ele é idoso, negro. Veste um terno gasto e tem uma Bíblia na mão. O calor absurdo deixa-nos todos em estado de paralisia, como se tudo andasse em câmera lenta.

O som abafado do trem se deslocando. A visão turva devido aos pingos de suor que descem pelo meu rosto e deixa tudo muito estranho e ao mesmo tempo familiar. Cheiro de churrasco misturado com perfume forte. De onde poderia estar vindo um cheio de churrasco num trem em movimento. Não importa, não duvido de mais nada, depois de tantos anos viajando de trem.
Mas... esse homem idoso atravessa a porta que separa o meu vagão do outro em ritmo lento. E eu também absorvo os estímulos externos em ritmo lento. O calor deixou-me murcho e lento. E minha percepção turbada.
O velho homem começa a pregar no trem. Ninguém liga e parece que nem ele liga também. Ele prega mecanicamente. Aliás toda a população tem estado meio mecânica, lenta, turbada muito provavelmente devido ao calor.
Percebo um homem ao meu lado que puxa assunto comigo.
Tudo isso não passou de um sonho. De qualquer forma a diferença entre realidade e imaginação tem menos importância do que costumamos dar.

- Preto Velho?!

- Não e sim.
- Esse homem é idoso e negro. É um preto velho.
Instante em que os dois homens se encaram.
O homem forte volta a falar.
- Ou é uma coisa ou não é.
- É...
- Existe alguma dúvida de que esse homem é um preto velho?
- Ele é um homem religioso.
- E não tem dúvida então. Na guerra não podemos ter intenção fraca.
- É.
Fala isso sem meio constrangido.
- Não estamos em guerra estamos?!
- Bem...
- Esse homem veste terno. Esta certo que é um terno gasto, mas é um terno!

Silêncio. Eles olham o homem andar com um livro preto na mão.
- Ou esse preto velho é um escravo alforriado ou não existe mais escravidão no Brasil.
- É que esse homem é um religioso que prega na rua.
- O Candomblé agora não é crime?!
- Ele não é do Candomblé. Ele usa terno porque é o costume da religião dele. Ele é velho e preto. Mas não é uma entidade, e nem de longe lembra os pretos velhos de seu tempo.
- Você falou que a guerra acabou. Confirmou sem convicção.
- Você fala como alguém do meu tempo presente e não do passado.
- Eu posso falar do jeito que bem entender. Sou de todos os tempos em que existe opressão ao negro. E falo de acordo com cada tempo.
-É, na verdade, o negro hoje fala muitas línguas.
- Muitos dialetos???
- É que não existe O Movimento Negro. Existem os movimentos negros. São muitos que reivindicam e divergem em como e em o quê reivindicar.
- Você fugiu da minha pergunta. Responda se estamos em guerra.
- Depende do que considere guerra.
- Sou um homem de ação e confio em meu próprio testemunho dos fatos.
- Não confia em ninguém.
- Confio em Olulum. E na força de meu braço, na coragem de meu coração e na esperteza de meu raciocínio. Para todas as adversidades, um homem deve contar somente com a fé em seus deuses, em seu coração, sua força e sua mente.
- E nos aliados?!
- Não. Eu já fui traído.
- Eu sei disso. Li os livros de his...
- Você não sabe de nada!
- Mas eu...
- Você?! Você não sabe de nada!!! Eu já fui traído muitas vezes. Infinitos Antonios Soares a trair o Espírito da Liberdade em nome de uma paz conformista. “Paz sem voz não é paz, é medo.”
- Essa é uma frase de uma música.
- Essa frase é minha pois veio de meu espírito.
- Como assim...?
- Toda vez que a liberdade é invocada, eis o Espírito: Zumbi.
- É... parece tão fácil, mas na pratica...
- Sou homem de ação. Quero ver esses movimentos negros de perto. Eu sou cada um deles. Em cada um deles existe um Zumbi. E cada Movimento Negro, em sua particularidade expressa o Espírito de Liberdade que evoca os ancestrais da Terra Antiga: África.
- Estamos tão longe da África.
- A África esta em nós, homem.
- Em nosso sangue.
- Nas palavras dos muitos dialetos. Nas provações de vencer na vida, no emprego, no trem lotado e na chibata que o trabalhador ainda recebe das forças de opressão. Na coragem em se fazer do jeito seu mesmo.
- Do seu jeito?
- Não há um jeito de ser negro. Cada negro constrói com suas vivências o que é ser negro e ninguém pode acusa-lo de ser menos negro só porque ele não é de Candomblé, não samba ou não joga futebol. O Ser negro esta no espírito. E isso não se coloca regras e nem definições.
- Puxa...
- Vamos. Leve-me até esses que você chama de Movimentos Negros.
- Humm... pelo que falou parece que você conhece muito bem esses movimentos.
- Mas eles me conhecem?!
- Bem... Não. Eles não conhecem.
- Há, verá que erra em dizer isso. Eles me conhecem SIM. E você também me conhece. Só que você ainda não percebeu isso.
- Diz isso pelo fato de eu não ser militante de nenhum movimento negro.
- Rapaz, cada negro é um movimento negro mesmo que ele não perceba, tais são as lutas que ele tem que travar em toda a sua existência.
- Não sei o que dizer. Estou confuso. Você parece dizer uma coisa e depois parece que diz o contrário.
- Sua confusão vai diminuir quando fomos até aos nossos irmãos dos movimentos para conversarmos.
- Ou ainda piorar. E você disse que na guerra não podemos ter intenção fraca...
- Mas a certeza absoluta pode ser confundida com tirania.
- Ué, mas você acabou de dizer... eu disse que parece que você muda toda hora de opi... Olha, eu já li em livros históricos que você também foi ditador.
- De qual dos Zumbi você fala??? Eu sou tantos. Tantos falam de minha pessoa e querem saber e dizer como sou... o que penso.
- Mas eu tenho minha opinião.
- Sim, você tem. Cada concebe o Zumbi da forma que merece e deseja. Como eu sou para você?
- Vou responder isso com uma música que eu fiz.

Continua... aparentemente a História não tem fim.

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