Eu sou o Velho, e se vocês são daqueles tipos de pessoas amantes dos relatos dos deuses antigos e das grandes epopeias de homens do mar eu peço humildemente que atentem para minhas palavras.
Saibam que os panteões não são só compostos por divindades racionais e de espírito cortês e civilizado. Existem também os deuses e imortais violentos que são os modos dos aspectos mais primais e instintivos no próprio ser humano. Tais deidades não são de modo algum menos nobres ou menos necessárias ao entendimento da natureza humana. Posto que somos animais também, não carecemos somente de divindades que nos remetam à nossa faceta mental e lógica. Em nossos porões mais escuros e escondidos, de nossa natureza humana, existem animais que precisam ser reconhecidos e, se possível adestrados, ou ao menos serem levados por nós para “passear”, para que, insatisfeitos por viverem sempre confinados pelo nosso superego, não acabem por se voltar contra nós. Isso é o que se chama “viver em conflito” pois gostemos ou não, e essa não é uma descoberta agradável, esses “animais do id” são facetas de nosso próprio EU e quando estamos em guerra com ela, estamos em guerra conosco mesmo. Numa guerra conosco mesmo, nós só saímos perdendo.
Como a perceber e reconhecer essa dimensão instintiva-telurica do humano, diferentes culturas em todas as épocas, conceberam variações dos arquétipos do Id. E na cultura Greco-romana, nós temos as Divindades Primordiais.
Ulisses Odisseu, cujo saga foi narrada por Homero em “A Odisseia” é a representação do homem que luta e tenta subjulgar esses aspectos brutais presentes tantos em deuses quanto em mortais. O seu embate com Polifemo fala disso e é, por assim dizer, a versão do “David contra Golias” dos gregos e dos romanos, onde a força bruta é sobrepujada pela astucia e pela inteligência humana e Sunt Tzu que não me deixe mentir.
No decorrer da tentativa de Uliisses e seus comandados de retornarem para seus lares, após a sangrenta guerra de Tróia, onde os primeiros saíram vencedores, eles passam por terríveis perdas e perigos. Vou apenas pinçar uma dessas desventuras. A que relata o dramático encontro do Rei Ulisses com o monstruoso filho de Poseidon, conhecido como Polifemo.
Ulisses e a tripulação de seu navio ancoraram sua nau numa ilha de clima quente e vento seco.
As feras que ali habitavam não incomodavam seus homens. Já acostumados com os combates com as grandes forças vivas da natureza, os homens do mar não se deixavam intimidar tão facilmente.
Entretanto, Ulisses ouve um grito de um dos homens. Ele chama a todos para ver o que encontrou. Quando Ulisses chega acompanhado dos demais, ele se estremece ao olhar o chão. O que parecia um pequeno lago... Um lago que poderia bem ser uma mini piscina natural onde caberiam facilmente uns quatro homens de tamanho médio. E essa piscina...
Bem... o que Ulisses viu e não teve coragem de expressar em palavras, outro homem o fez – Esse pequeno lago tem o formato de uma pegada de pé humano.
Ulisses assume expressão lúgubre.
Outro homem retruca – Não. Nada humano seria capaz de produzir uma pegada dessas.
Ulisses não quer que o pânico se instale entre seus homens. O cansaço e a desesperança já tem sido parceiros indesejáveis de viagens e suficientes para minar as forças dos comandados de Ulisses Odisseu e este não deseja que o temor se alie aos outros dissabores dessa extenuante viagem.
Por um tempo eles exploraram toda a extensão da ilha e constataram que ali não teriam dificuldade em encontrar suprimentos para reabastecer seu navio para prosseguir a viagem.
E, foi com certo desconforto, que eles foram testemunhando outras pegadas. E o que os deixaram mais ainda aterrorizados foi o fato de que muitas vezes eles viam vários pares de pegadas juntos. Sem duvida a tripulação do Rei Odisseu tinha aportado numa ilha habitada por gigantes.
Ao cair da noite, as feras silenciaram e isso de maneira alguma foi causa de serenidade entre aqueles homens. Decerto, as feras mais conhecidas por eles, e que habitavam aquela ilha, tais como leões, javalis e leopardos, eram o prato principal de predadores muito mais poderosos do que eles e que o pior pesadelo do marinheiro mais supersticioso se nem chegaria perto do que certamente, eles sabiam que os esperava.
No dia seguinte, a exploração teve fim. Ulisses decidiu na noite anterior que o mais sábio seria eles partirem o quanto antes daquela ilha de gigantes e que somente aguardariam o dia raiar, pois não covem levantar ancoras de noite, quando não se sabe a direção do vento. Por mais perdidos que eles já estavam... não poderiam ficar mais, porem se foi uma coisa que Ulisses aprendeu desde que vem tentado sem sucesso retornar de Tróia é que as coisas sempre podem ficam piores do que já estão e não é prudente agir com desleixo ante a evidência de mais perigos.
Tinha uma caverna bem no centro da ilha. Isso Ulisses tinha descoberto no dia anterior. Se perguntarem o que fez Ulisses ir até essa caverna, contra toda a prudência, isso permanece um mistério. Dizem que foi o cheiro agradável de churrasco e que os instintos mais básicos e atávicos que atraem quase que irresistivelmente os humanos na direção da carne de um churrasco. Parece que o DNA humano esta programado para não oferecer muita resistência à tentação da oferta de proteína animal.
Esse foi um dos erros mais graves do rei grego. Um erro que ele carregou o remorso até os seus últimos dias de vida na terra. Os gritos de horror ainda de seus homens sendo devorados vivos ainda hoje, quando ele já habita o conforto de seu reino, ecoam em seus ouvidos e em seus sonhos e o fazem acordar suado e ofegante e somente, com muito custo, sendo acalmado por sua esposa Penélope.
Sobre o que se sucedeu foi difícil obter dados muito precisos pois o testemunho de Ulisses e de seus comandados estavam turvados pela forte emoção, o que modernamente se chama de stress pós traumático.
No interior dessa caverna, de fato os homens do mar encontraram carne sendo queimada. Carne saborosa e uvas frescas. Uvas que eles fizeram vinho e se refestelaram esquecendo-se completamente de sua urgência em evadir daquela ilha e da ameaça ainda não manifesta que silenciosamente prometia revelar.
Esses foram alguns dos depoimentos colhidos pelos sobreviventes e que tive acesso por meio de duras, penosas e exaustivas pesquisas em alfarrábios pelos sebos do Centro Velho da Cidade e em bibliotecas particulares de alguns amigos excêntricos que minha própria trajetória de excêntrico também me permitiu travar conhecimento. Isso se vocês considerarem excentricidade ter verdadeira sede e fome por conhecimento e uma quase obsessiva tendência a querer saber os muitos lados de relatos que geralmente se tem como já revelados em sua verdadeira essência.
“- Ele era monstruoso.”
“ – Não quero falar disso, nunca mais... não quero me lembrar disso...”
“- Lembrar disso, ter visto tal horror só é superado por ter sido vitima de tal aberração.”
“- O colossal filho de Poseidon nos fez de seu banquete.”
“- Eu perdi duas pernas e a metade de meus braço esquerdo e... oh, por Jupiter e por Marte... eu estou vivo para contar.”
“ – Não sei se estou vivo mesmo... não consigo ter certeza se realmente eu escapei com vida do monstro Polifemo ou se na verdade estou vagando no Hades, sonhando em delírio que ainda estou vivo.”
“ – Não sei porque... Ulisses disse ao monstro, quando lhe perguntou seu nome, que ele se chamava ‘Ninguém’” Acho que foi por raiva de estar vendo o ciclope devorar seus companheiros de dúzias em dúzias, ou sei lá... já não tenho certeza de mais nada.”
Ulisses nos conta, por meio do Poeta Homero, que embebedou o gigante de um olho só e quando este desmaiou ele o cegou com uma enorme lança improvisada de um tronco que havia na caverna.
Mas eu ouvi e li de outras fontes que o ciclope Polifemo na verdade caiu de bêbado em cima de uma estaca e desse modo teve seu único olho perfurado.
Também li em outros fragmentados que o filho de Poseidon conhecido como Polifemo, por estar muito embriagado, desabafou de uma frustração amorosa quando foi desprezado por uma bela ninfa e na loucura do álcool, disse que seu maior inimigo era seu olho por ter permitido que ele vislumbrasse a beleza da moça em questão e num acesso de loucura bêbeda de amor não correspondido cegou a si mesmo. Polifemo não era o único ciclope habitando aquela ilha. Para os menos interessados nas minúcias dessas divindades mais brutais e de natureza telúrica, esclareço que os ciclopes são gigantes de aproximadamente 30 metros de altura, possuindo um olho só. Proporcionalmente, eles teriam a mesma força, vigor e velocidade de uma humano padrão se eles tivesses a estatura de humano padrão. São todos filhos de Gaia, a Mãe Terra e relembrando vocês, meus queridos, Gaia concebeu com Saturno-Cronos, O Tempo, quatro estirpes de criaturas tão poderosos quanto indômitas, a saber: Os Hecatonquiros, que são gigantes de cinquenta cabeças e cem braços; Os Gigantes, dos quais, o que merece destaque é Golias; Os Titãs, esses mais citados nos cânones dos círculos acadêmicos mais respeitáveis; e por fim, os Ciclopes, dos quais me refiro nesse relato.
O que posso contar à partir de então, são só conjecturas. Não obtive dados, até o momento presente, da versão de Polifemo desse suposto fato. Posso adentrar no terreno da especulação elegante, se permitem que eu me utilize mais da imaginação do poeta do que da objetividade do historiador:
Os irmão de Polifemo correram até ele para acudi-lo quando ouviram seus gritos de dor e de ódio. O encontraram ferido com seu único olho perfurado por uma espécie de lança improvisada.
É importante ressaltar que seria praticamente impossível os sobreviventes do banquete de Polifemo escaparem da perseguição dos outros ciclopes, uma vez que seriam gigantes perseguindo homens comuns em campo aberto, onde a vantagem decididamente não é de quem é muito pequeno. Com os três agravantes de que os ciclopes conhecem muito bem a ilha, os marinheiros estavam em pânico e que o desejo de vingar o irmão que foi cegado e a possibilidade de ter uma variar o seu dieta , que geralmente é composta mais da iguaria mais recorrente da ilha estariam motivando os monstros .
Só existe uma possível explicação plausível para que os outros ciclopes não terem saído em perseguição aos marinheiros. Quando indagaram quem lhe fez isso, Polifemo talvez tenha respondido “Ninguém cegou Polifemo. Ninguém Feriu Polifemo.”
E Polifemo, um monstro de um olho só(pois só há um foco para cada instinto) e num segundo momento, cego, ferido e louco(quando nossos instintos são contrariados e fogem ao nosso controle)
E por falar em não contrariar os instintos e se harmonizar com eles, até que ponto nosso Ulisses e nosso Polifemo estão em paz entre si? Até que ponto nossas ações são o resultado de um comum acordo entre ambos ou apenas um jogo louco e esquizofrênico em que dizemos querer algo e, contraditoriamente, nos sabotamos e acabamos por fazer o oposto, ainda que possamos afirmar que “foi o destino”, “ foi culpa de fulano” ou “Deus não quis”???
Quem nos cegou!? Quem nos feriu???
Eu sou o Velho e agradeço humildemente pela atenção dispensada.
Fim do conto.
Da série: “Histórias do Velho”.
Texto adaptado livremente por Wanderson Silva da Mitologia Greco-romana.
A pintura é do Wanderson Silva de Souza e chama-se “Polifemo”(O ciclope do mito Greco-romano).
“O Velho” é um personagem livremente inspirado em Dimas de Fonte, cujo blog “ABC Imaginário” vocês podem ver nos links desse blog.
Ps. Essa mania de transformar um amigo-irmão meu em “porta-voz” de meus textos eu peguei com o Platão que também transformava Sócrates em personagem de seus “Dialogos”. O "Velho"(Dimas de Fonte) por ele mesmo, vocês podem confiram no blog que eu indiquei acima. (E se o fizerem vão apreciar de deveras)
Bom domingo para Todos & Todas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário